A compreensão das interações que ocorrem no microambiente tumoral permitiu uma nova abordagem terapêutica, elegendo alvos ligados à sobrevivência e resistência das células tumorais. A talidomida e, mais recentemente, a lenalidomida, são exemplos de fármacos que possuem ações antiangiogênicas e imunomodulatórias, controlando os feedbacks do microambiente tumoral, além de apresentar uma ação citotóxica direta por indução a apoptose. Estes fármacos são hoje aprovados para o tratamento de pacientes com Mieloma Múltiplo (MM) refratário às terapias convencionais, mostrando excelentes resultados na remissão da massa tumoral na faixa de 23-58%. Com esses propósitos, as estatinas, fármacos muito utilizados para o tratamento da hipercolesterolemia, vêm sendo muito exploradas pelos seus efeitos pleiotrópicos, destacando-se os efeitos antiinflamatórios, imunomodulatórios e antitumorais.
Os efeitos antitumorais das estatinas estão relacionados a propriedades anti-proliferativas, indutoras de apoptose e inibidoras da angiogênese, sendo considerados fármacos antineoplásicos promissores. Em modelos in vitro (ex.: mesotelioma maligno, osteossarcoma, melanoma e neoplasias hematológicas, etc) e in vivo (ex.: glioma e neuroblastoma murinho, etc), as estatinas mostraram efeitos citostáticos e citotóxicos dose-dependente. Outros estudos apontam para a diminuição da expressão de moléculas de adesão, angiogênese tumoral e secreção de citocinas, como a IL-6, representando ações imunomodulatórias das estatinas.
As estatinas são inibidores competitivos da enzima 3-hidroxi-3-metil-glutaril-Coenzima A redutase, uma enzima que controla a etapa limitante para a síntese de mevalonato e seus precursores, como os isoprenóides, o dolicol e o colesterol. A depleção destes compostos a nível intracelular pode estar envolvida nos mecanismos de citotoxicidade celular ocasionado pelas estatinas, uma vez que todos os derivados do mevalonato são componentes essenciais para as células.
O colesterol é o principal componente estrutural da membrana plasmática e a sua biossíntese esta relacionada com o processo de desenvolvimento celular. Aparentemente, seu papel como componente estrutural é fundamental no início da fase G1 para a progressão do ciclo celular. O dolicol é um lipídio da membrana do retículo endoplasmático e tem a função de incorporar oligossacarídeos às moléculas protéicas para a síntese de glicoproteínas, além de ter um efeito estimulatório sobre a síntese do DNA e estar ligado a várias proteínas tumorais. Entretanto, estudos apontam que os principais compostos envolvidos nos efeitos antitumorais, imunomodulatórios e antiangiogênicos das estatinas são as moléculas farnesil pirofosfato (FP) e geranilgeranil pirofosfato (GGP). Essas duas moléculas isoprenilam pequenas Guanosina-Trifosfatases (GTPases) envolvidas na transmissão de sinais intracelulares, com destaque para duas famílias de proteínas, a Ras (FP) e Rho (GGP). A isoprenilação ocorre por ação de transferases que ligam covalentemente os isoprenóides às proteínas, permitindo a fixação destas na membrana plasmática. As GTPases ancoradas à membrana plasmática pelos isoprenóides controlam a transdução de sinais intracelulares de vários receptores de membrana (ex.: receptores tirosinoquinases) que modificam a expressão de genes, controlando a proliferação, diferenciação e apoptose.
Mutações em proto-oncogenes responsáveis pela expressão das proteínas Ras e Rho são encontradas em vários tipos de cânceres, inclusive no MM, onde a expressão do oncogene para a proteína Ras é encontrada em cerca de 40% dos casos. Estas mutações resultam em uma proteína Ras resistente a hidrólise tornando-a constitucionalmente ativada, resultando em proliferação celular e no aumento da sobrevivência das células tumorais. As estatinas diminuem os substratos necessários para ancorar esta proteína à membrana plasmática, impedindo que estas proteínas, mesmo constitucionalmente ativadas, tornem-se funcionais. Acredita-se que este mecanismo implica em uma série de alterações na sinalização intracelular, resultando na alteração do ciclo celular, na inibição da proliferação e na indução à apoptose nas células tumorais, além de inibir rotas bioquímicas relacionadas à secreção de citocinas pró-inflamatórias. Embasamento para este mecanismo foi experimentalmente demonstrado por Jakobisiak et al e Rubins et al, os quais observaram a redução desta proteína ligada a membrana plasmática e um acúmulo no citoplasma da proteína Ras em células de carcinoma de bexiga (T24) e em células de mesotelioma maligno, respectivamente.
Vários trabalhos especulam a atividade pró-apoptótica das estatinas ocasionada pela super-expressão de proteínas pró-apoptoticas (ex.: Bax e Bim), juntamente com uma redução de proteínas anti-apoptóticas (ex.: Bcl-2 e Mcl-1), como demonstrado em células de glioblastoma por Jiang et al. Niels et al, demonstrou que a inibição da geranilgeranilação de proteínas induzem à apoptose por redução de Mcl-1 em células de mieloma tratadas com lovastatina. Caffotio et al, demonstrou a ativação de caspases em linfoblastos e em células de mieloma tratados com estatinas. Interessantemente, células normais apresentam uma certa resistência a estes efeitos e alguns tipos tumorais são mais susceptíveis.
A parada nas fases G0/G1 do ciclo celular em células tratadas com estatinas já foi demonstrada em vários experimentos com células tumorais e não tumorais, em que fortes evidências apontam para a via do mevalonato como foco de ação das estatinas. Em um experimento realizado por Huneeusl e colaboradores foi evidenciada a importância do mevalonato sobre o ciclo celular. Neste trabalho o mevalonato assume duas importantes funções na progressão do ciclo celular: uma no início da fase G1, originando o colesterol estrutural necessário para o desenvolvimento celular; e no final da fase G1 (na passagem para a fase S), na qual a sua função é devida aos seus derivados isoprenóides que provavelmente são necessários para a síntese do DNA. Dessa forma, a inibição da via do mevalonato impede a proliferação do ciclo celular e provoca um bloqueio no ciclo celular das células na fase G1.
Está bem documentado que os derivados do mevalonato (FP e GGP) estão intimamente envolvidos com a progressão do ciclo celular por serem requisitados nas modificações pós-translacionais de proteínas reguladoras. Alguns autores mostraram uma maior dependência ao GGP do que FP para progressão do ciclo celular, como demonstrado Crick e colaboradores que trataram células de glioma (C6) com lovastatina e posteriormente adicionaram farnesol (FOH), geranilgeraniol (GGOH) e mevalonato, avaliando a replicação do DNA (representativo da fase S do ciclo celular) e a proliferação celular. Neste experimento, a proliferação celular e a replicação do DNA foram significativamente baixas com a adição do FOH, ao contrário do observado com a adição de GGOH e mevalonato, mostrando o papel crucial do GGP para a isoprenilação de proteínas e para a progressão das fases G1-S do ciclo celular.
Porém, a dependência do GGP é motivo de controvérsias e parece depender do tipo celular e da proteína superexpressa na célula. Por exemplo, a proteína Rho envolvida na regulação da motilidade celular, encontra-se superexpressa em células de melanoma de grande potencial invasivo, envolvendo preferencialmente o GGP para tornar-se funcional. Já a proteína Ras necessita da FP para a isoprenilação à membrana plasmática, onde se torna funcional. Segundo alguns estudos (Le Gouill et al; Bolick et al), inibidores específicos da farnesil transferase possuem potencial atividade anti-mieloma, inibindo o desenvolvimento do tumor e induzindo à apoptose.
Outras hipóteses para a interrupção do ciclo celular pelas estatinas estão relacionadas à estabilização de quinases inibidoras do ciclo celular (p21 e p27) que se ligam a Quinases Dependente de Ciclina 2 (CDK2). Este processo leva a diminuição da atividade da CDK2 e, consequentemente, a uma parada do ciclo celular em G0/G1, como demonstrado em linhagens celulares de câncer de mama por Rao e colaboradores.
Os efeitos antiangiogênicos estão relacionados à diminuição da secreção do VEGF, provavelmente devido à inibição da farnesilação da proteína Ras, como demonstrado em experimentos com células normais epiteliais e de fibroblastos e também em células de carcinoma colorretal. O VEGF é a principal citocina envolvida nos processos de angiogênese tanto em situações fisiológicas quanto patológicas. O suprimento vascular é essencial para a sobrevivência, proliferação e metástase de células não só de tumores sólidos, como também de neoplasias hematológicas. No MM, esta citocina induz as células do estroma medular e as células endoteliais a secretarem mais IL-6, além de promover angiogênese no microambiente tumoral. O aumento da densidade capilar eleva a proliferação das células malignas, podendo ser considerada um dos maiores determinantes da proliferação tumoral. Interessantemente, as estatinas apresentam um efeito bifásico dose dependente, em que induzem a angiogênese via PI3-Akt kinase com fosforilação de eNOS em concentrações nanomolares, e inibem a angiogênese em concentrações micromolares.
Com reconhecimento da importância do microambiente tumoral na patogênese das neoplasias (ver artigo “Interações entre o microambiente tumoral e o Mieloma Múltiplo”), espera-se que novos fármacos, como as estatinas, atuem não apenas sobre células tumorais, como também modulando as interações com as células adjacentes ao tumor. Estes efeitos poderiam aumentar a sensibilidade a outros agentes terapêuticos e, por consequência, aumentar a eficácia na remissão da doença.